Há 35 Anos: Amapaense conta como escapou do maior suicídio coletivo da humanidade


Pastor Jim Jones (1931-1978), responsável pelo maior suicídio coletivo na história.

Um olhar simples de um cidadão interiorano, com uma estatura média (pouco mais de 1,5m de altura) demonstra com clareza a vida que o aposentado Antônio Jonas de Souza, conhecido como "Joca", hoje com 68 anos, já testemunhou. Filho de humildes pescadores, nasceu na região de Calçoene (centro-oeste do Estado do Amapá) e desde cedo trabalhou duro ao lado dos pais para ajudar no sustento da numerosa família composta de outros oito irmãos. 

“Tínhamos que levantar quatro da manhã pra preparar a lenha pro café e ainda amanhecendo seguíamos com meu pai pras mariscar (pescar). Não eram todos meus irmãos, apenas outros dois ou três que ajudavam no trabalho. O que ficava de fora tinha que estudar e ajudava em casa com minha mãe”, contou Seu Joca, sobre a vida humilde que atravessou com a família, sendo ele um dos responsáveis para cuidar de seus irmãos, onde dois conseguiram caminhar para o funcionalismo federal do ex-Território do Amapá. 

“Eu não era o mais velho dos filhos, mas ganhei responsabilidade desde cedo do meu pai e isso me ajudou muito na vida”, enfatizou Seu Joca, que antes mesmo de chegar aos 15 anos, já era um próspero ajudante de comerciante da região do Goiabal (Calçoene), vindo a montar seu próprio negócio com pouco mais de 20 anos. “Como no interior tudo que a gente planta é bem vendido na cidade grande, vim trazendo muitos produtos pra Macapá e rapidinho era vendido nas feiras. Era farinha, coco, jambo, arroz em fardo, qualquer coisa que vinha do interior não deixava de ser vendido. Vim de carona em um caminhão e voltei num barquinho que comprei com a venda”. 

Assim que percebeu sua capacidade de lhe dar com o ramo comercial, Seu Joca decidiu ir mais longe e montou em sua própria embarcação (tipo médio barco) uma estrutura para comportar materiais que viria a vender por localidades ribeirinhas do Amapá, tornando-se um conhecido “regatão” pelos rios Araguari e Amazonas. 

No Oiapoque
Por volta de 1977, seu Joca chegou com sua embarcação no município de Oiapoque, com intuito de comercializar seus produtos naquela pacata região. “Quem via Oiapoque naquela época, não acreditaria se dissesse que tinha pouco mais do que 20 ou 30 famílias por ali espalhadas. Lembro que havia quatro ruas para as pessoas andarem, e nem essa BR (a rodovia BR-156) se via tanto como hoje falam”, relembra o aposentado, “Era um lugar sem muito movimento como hoje falam em atravessar para a Guiana. As pessoas que vinham do lado de lá (Guiana) eram bem raros, se comparado ao número que ia daqui”. 

Como jovem comerciante na fronteira do Brasil, seu Joca também não hesitou em querer atravessar o Rio Oiapoque para se aventurar do lado francês, onde ali formou diversas amizades. “Há quem diga que os franceses são muito mal-humorados, mas todos os franceses com quem fiz amizade sempre mantive uma boa amizade. Havia comerciantes de Caiena que me convidavam pra morar pra lá, mas não achava ainda uma região promissora como hoje muitos querem ir”, disse seu Joca, que abriu mão de diversos convites feitos por amigos franceses para montar seu negócio naquela república, mas preferindo apenas conhecê-la amistosamente. 

Entrada da fazenda "Jonestown"
A Cidade Prometida de Jim Jones
Durante suas constantes travessias para o lado francês, seu Joca contou ter conhecido pessoas que falavam da existência de uma comunidade religiosa, numa fazenda que fazia quase fronteira com o Suriname, onde ali alegavam preparar as pessoas para um grande “Encontro Divino” que aconteceria muito em breve. “Vendia produtos para alguns comerciantes que falavam de uma vila onde moravam somente pessoas que tinham interesse de fugir dos problemas da cidade grande, e que ali seria um tipo de refúgio para essas pessoas. Haviam até brasileiros interessados em conhecer esse lugar”, disse. 

Em certa ocasião, o aposentado (na época já um jovem e respeitado comerciante) recebeu um convite de outro comerciante francês para deixar algumas mercadorias na tão comentada fazenda religiosa. “Um senhor chamado Pierry que tinha um armazém no Platô das guianas me convidou pra deixar alguns mantimentos comprados pelo dono daquela fazenda e havia pedido para deixar essas compras lá na fazenda”. O que seu Joca não imaginava era que o dono daquela fazenda era o ex-pastor norte-americano Jim Jones, que, segundo seu Joca, era um homem de poucas palavras. 

Aspecto interno da fazenda também denominada de
"Templo do Povo", mantida por Jim Jones
“Lembro que foi duas semanas antes de acontecer aquela tragédia na região que fomos deixar as compras na fazenda. Era uma área que ficava bem isolada de qualquer lugar, seguia-se numa estrada de chão por quase uma hora pra chegar lá. Quando chegamos, havia dois homens armados no portão de entrada que nos perguntou do que tratava e falamos sobre as mercadorias compradas para aquela fazenda, foi aí que liberaram nossa rápida entrada no local”, contou seu Joca que descreve o cenário precário que viria dias antes ao fatídico dia. “O que ainda cheguei a ver foi duas tendas grandes que foram construídas e ali estavam cheias de redes, com certeza muitas pessoas dormiam bem apertadas naquele espaço. Outra coisa que vi muito rápido foi a quantidade de crianças que tinha no local, eram muitas que andavam chorando”. 

Cadáveres de "suicídas" na fazenda de Jim Jones
A tragédia
Seu Joca conta que dias após terem deixado as mercadorias na fazenda, chegou a notícia da tragédia quando retornava para o Oiapoque. “Lembro que era uma tarde de domingo quando o rádio falava sobre pessoas mortas numa fazenda da Guiana, mas ainda não sabiam o número exato de mortos. Foi somente no outro dia que o Exército chegou ao local e confirmou mais de 900 pessoas que tinham se matado”. 

Pelo relato registrado na imprensa, o aposentado acredita que haviam brasileiros entre os mortos. “Houve uma quantidade muito grande de pessoas que não souberam identificar, tenho certeza que tinham brasileiros nesse meio, até pessoas daqui do lado do Amapá. Não podiam chegar ninguém na fazenda, mas o que chegou ao conhecimento das cidades próximas é que muitos estrangeiros estavam no meio dos mortos”, relatou o aposentado, que retornou ainda em 1978 para o Amapá, seguindo diretamente para Calçoene. 

Perfil do líder da seita
Um fato revelador foi dito por seu Joca após mais de 35 anos que esse triste episódio aconteceu. “Quando a gente deixava as mercadorias na fazenda, um desses seguranças do dono da fazenda chamou ele (o Jim Jones) para acompanhar o desembarque do material. Quando ele chegou até nós, procurou ser bastante educado, e ainda nos convidou pra ficar e dormir na fazenda, mas dissemos que estávamos com um pouco de pressa. Ainda cheguei a cumprimenta-lo (pegou nas mãos de Jim Jones).” 

Seu Joca conta ter pressentido uma situação nada boa que viria a acontecer dias depois naquela fazenda, que entraria para os anais da nossa história: o dia seria 18 de novembro de 1978, quando o líder da comunidade, Jim Jones, revoltado com as futuras decisões que seriam tomadas pelo governo norte-americano em acabar com seu "Templo do Povo", levou seus seguidores a tomarem um suco contendo cianeto (e outras composições químicas), resultando num saldo superior a 900 pessoas mortas, somando entre homens, mulheres, idosos e quase 200 crianças. 

Em visita na casa de um de seus três filhos no município de Santana (AP), seu Joca concedeu essa entrevista exclusiva ao blog. Atualmente está aposentado por invalidez (há pouco mais de sete anos) após um acidente de trabalho, quando exercia a função de carpinteiro, recebendo um salário mínimo mensalmente. Ainda reside na vila histórica de Cunani, acompanhado de um filho adotivo.

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